"... e cuide de papai e mamãe. amém."
a menininha terminou de rezar, agarrou o ursinho de pelúcia e quase que instantaneamente dormiu.
então ela logo acordou, levantou, saiu do quarto e desceu as escadas, procurando seu pai. não o achou em lugar nenhum da casa. pensou que talvez ele estivesse lá fora, fumando. abriu a porta de casa e viu que já era dia. viu que ao invés de rua, vizinhos, havia só um campo verde sem fim. e lá longe, uma árvore. e viu alguém de pé, ao lado da árvore. então, a menininha resolveu andar até lá.
quando ela foi chegando mais perto da árvore, viu que era seu pai. e também viu que a árvore parecia podre. cheirava forte. era murcha, preta, encurvada. não tinha folhas. só umas frutinhas também escuras, também podres. então ela gritou,
- pai! que lugar é esse ? que árvore é essa ?
ele não respondeu. só olhou-a, levantou o braço até os galhos, pegou uma frutinha da árvore e comeu.
- pai! essa árvore está podre, essas frutas estão podres!
- eu sei, filha.
- sai daí, pai. vem aqui comigo. eu não consigo ir até aí. o cheiro está muito forte.
- eu sei.
a menina parou de andar. viu que o pai parecia cansado. talvez até meio doente.
- para de comer essas frutas, pai. elas vão te deixar doente.
- eu sei que me deixam doente. mas eu não vou parar.
- por que não, pai ?
- é complicado, filha.
- essa árvore te faz mal, esse lugar te faz mal. volta pra casa junto comigo, pai.
ela estava ficando sem ar. o cheiro era nauseante. aquela visão do pai cansado do lado daquela árvore velha e podre, também era nauseante. mas ela queria tirar o pai dali. queria voltar pra casa com ele, pra que o pai voltasse a ser saudável e feliz. porque ele não era feliz se alimentando daquela árvore. então ela prendeu a respiração e foi chegando mais perto. e o pai dela continuava comendo as frutas. e ficava cada vez mais pálido, macilento.
- não faz isso, pai!
e quando falou, a menininha respirou o ar podre e se sentiu tonta. começou a chorar.
- vem aqui comigo, pai! lá em casa tem comida, não precisa ficar pegando essas frutas. eu estou com medo, pai!
- não vou voltar mais pra casa. eu agora vou ficar aqui. se você quiser vir me ver, vai ter que aguentar a podridão da árvore.
então a menina controlou a vontade de desmaiar, aguentou o cheiro forte, engoliu o choro e foi caminhando em direção ao pai. quando chegou ao seu lado, a menininha quis abraçá-lo. ele a empurrou de leve e ofereceu uma daquelas frutas.
- se for pra ficar aqui comigo, tem que comer uma delas.
- mas eu não quero, pai.
- então vai embora.
- eu quero ficar com você, pai, não me manda embora!
a menininha voltou a chorar. abraçou as pernas do pai e quase que gemendo, replicou,
- vamos embora, pai. por favor...
- eu não saio mais daqui. ou come ou vai embora.
então ela resolveu comer. chorando, enjoada, agarrada às pernas do pai, quase desmaiando, ela fechou os olhos, abriu a boca e deixou-o colocar a fruta podre em sua boca.
amargo. terrivelmente amargo e frio. se a menininha já estava nauseada, seu mal-estar triplicou. ela mastigou a fruta e seu suco foi descendo pela garganta. ela não conseguia mais respirar.
- pai, eu não estou bem...
- ou engole ou vai embora.
- mas eu quero ficar junto com você, pai, pra sempre.
- ou aprende a aguentar ou vai embora.
- mas me faz mal. toda essa árvore podre me faz mal. e também te faz mal, pai.
- eu sei.
- eu amo você, papai. eu quero sair daqui, mas não quero ficar longe de você.
- eu também amo você. mas daqui eu não saio.
a menininha não aguentou. deixou a náusea tomar conta dela e desmaiou, caindo aos pés do pai. que olhou-a desacordada e só suspirou. tirou os pés debaixo dela e pegou mais uma fruta pra comer.
- eu não posso fazer nada se a árvore te fez mal, minha filha. é só... complicado.
mastigou e ficou terrivelmente esquálido e doente.
então a menininha acordou assustada e começou a chorar. ouviu passos apressados subindo a escada e logo o pai abria a porta.
- que foi, filha ?
- tive um pesadelo, pai. estou com medo!
o pai sentou-se ao lado dela e a abraçou.
- calma, minha filha. eu estou aqui. foi só um sonho.
- você estava doente, pai, do lado de uma árvore podre com as frutas podres e você comia e ficava feio, triste, distante de mim e então você me deu uma das frutas pra comer e eu desmaiei. e você não fez nada, pai.
- foi só um sonho, filha. você sabe que eu nunca faria nada que te fizesse mal. foi só um pesadelo.
- dorme aqui, não me deixa sozinha, fica comigo, pai.
- fico. pra sempre.
um final feliz no papel pra tentar curar minha decepção.
não mais sobre o amor empírico, mas sobre aquele que nasce junto com a gente. nasce com a gente porque é daqueles que justamente fazem-nos nascer. sobre o amor inato e incondicional que é decepcionado.
e agora um pedido.
para os pais que leram isso: jamais decepcionem seus filhos.
3 comentários:
(parece que você lê mentes.) o amor inato é o mais complexo e cheio de curvas. as vezes a decepção parece tão incrustada no sentimento que fica difícil...
Eu costumava ter um senhor altão que me salvava dos pesadelos simplesmente não indo embora. Agora, quem tenta salvá-lo da árvore podre dele sou eu.
Curioso como tuas palavras cravaram fundo na minha própria história. Obrigada por descrever o que eu nunca soube ♥
Que lindo lindo lindo. Dá vontade de grudar a guria pelos braços e tirá-la daí. Que o pai é macaco velho e sabe o que faz - ou deveria.
Eu entendo muito bem sobre decepções, vinda dos meus pais, então. Mas eu sempre as curti, sério. A melhor sensação, depois da dor, é claro, é saber das coisas, ser desperto pra realidade.
Beijo.
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