sábado, 12 de fevereiro de 2011

o coração molhado da calçada cinza.

posso contar umas coisas ? mas chega perto, vem, se aproxima, é tudo segredo, não dá pra qualquer um ficar sabendo, estou contando pra ti porque és de confiança, então vê lá, hein. assim. aqui perto de casa, toda vez depois que chove, em determinada parte da calçada, faz uma poça em forma de coração; sempre fez, sabe. desde criancinha que eu percebo isto, desde criancinha que eu presto atenção e jamais piso em cima desta poça, não piso no coração dos outros, por mais cinza que a calçada seja. chega mais, não acabou ainda, preciso contar mais um segredo. eu quis outros caras; eu desejei os corpos deles, quis que eles me tocassem, senti ciúmes das namoradas deles, fingi de noite que eles eram meus. é feio, eu sei, gosto de outro e fico fazendo isso, mas o pior eu não contei. eu beijei eles. numa só noite entreguei meu coração a eles, junto com o corpo; entreguei, mas peguei de volta.
e sabe aquele outro ? é, aquele que nunca me viu realmente existir e me trocou por garrafas de cervejas. este. ele anda me observando. ele anda me perseguindo. aqueles outros caras me protegem dele por um tempo, mas só amanhece o dia, e ele volta. quando eu faço minhas graças pra diversão alheia, ele ri daquele jeito de olhinho fechado e escondendo o rosto nas mãos. quando eu ando na ponta dos pés, ele se encanta todo. quando eu faço drama, eu ouço ele dizer, "vem cá, vem, nenenzinho". quando eu acordo no meio da noite, pego a caneta, começo a escrever e afastar os cachos rebeldes que atrapalham a vista, ele sorri quietinho e fica lendo cada palavra atrás de mim. e quando eu me encanto por outro par de braços mais musculosos que o dele, ele sente ciúme; ele faz aquela cara de sério, fazendo biquinho com a boca, cruzando os braços e me olhando de cima, com aquela cara de molequinho enfezadinho crescido demais. estou dizendo. verdade. ele fica me assistindo, como se minha vida fosse filme. eu andei me preocupando, tentando afastar ele de mim, mas aí eu percebi que não vai adiantar. ele sempre vai andar comigo. e eu, como boa filha de leonina que sou, faço mais graça, adorando ser o centro da atenção. mas ele não me observa direito. ele não me vê do jeito que tem de ser. ele me analisa racionalmente demais, acha que eu sou mais um dos computadores que ele tanto se naturaliza. ele acha que vai descobrir cálculo pra explicar meus sorrisos. e às vezes ele pega as nossas póstumas alianças e, além de ainda se inconformar por meu dedo ter cabido naquele anel tão pequenininho, fica lendo meu nome escrito por dentro na dele; é, ele fica lendo meu nome. ele lê e repete em pensamento, "Verônica", e quando faz isso, eu, que já até esqueci do rosto dele, o vejo na minha frente. e ele repete, "Verônica", num transe hipnótico. eu arregalo os olhos, finjo que não vi o que vi, olho pro lado e faço de conta que ainda estou sã de mim, mas sempre acabo respondendo, "anjinho, meu anjinho, por que fostes embora ?". e ele não gosta, sabe. fica bravo. acha que fez certo, que tinha de se afastar mesmo, se se aproximasse mais, o que aconteceria ? viraria um cretino que ama ? não. o egoísmo tão necessário dele estava lá pra quê ? pra ser desperdiçado ? não mesmo. ele tinha orgulho de ser uma geladeira ambulante e arrogante, que sabe mexer com máquinas mas não sabe nem como chorar direito, e não deixaria uma menina que nem chegava aos 1,60m, que nem tinha saído do ensino médio e falava alto demais, não deixaria ela enfiar calor lá dentro dele. e aí ele vai embora. desdenhoso e desumano, vai embora pras noites cheias de rostos sem feições e doses amargas de álcool, que tiram de vez da cabeça dele aquela outra de boca bonita e olhos pretos assustadores.

e assim fica ele. perdido.
e assim fico eu. perdida.

cada um afundado nos próprios defeitos, um por ser frio demais, outra por ser intensa demais. ambos fingindo descaso, rindo pros amigos e dizendo que o outro nem existe mais. ambos perdidos neste mar de sujeira que é o fingimento.

mas ó, shhhhhhhh. não vai acabar com o nosso espetáculo de sombras. conta pra ninguém não, que aí, quem sabe, você acabe admirando o tombo que cada um vai levar numa hora, por ter dado às costas ao amor, cada um a sua maneira.
fica quietinho e espera eles caírem. só espera.


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ps.: sobre a troca por garrafas de cerveja e principalmente sobre a poça, não há metáfora, é a mais pura verdade (:
ps. (2): um obrigado enorme pra cada um que deixa seu comentário, ninguém sabe da força que me passa a cada letra que escreve aqui, no meu humilde caminho alternativo que encontrei de me auto-ajudar.
mas dedicarei este meu post principalmente à Ilzy Sousa, Marcelo R. Rezende, Mariana de O.C. e Evelyn Colaço, meus confidentes preferidos daqui, que me fazem sentir aconchegada e compreendida, que me encantam e me fazem, cada vez mais, me apaixonar por cada um deles; e por seus respectivos parágrafos, sempre.
sinto como se cada um já vivesse a um bom tempo comigo, como se sempre existissem no meu mundo e fossem parte essencial dele.
obrigada mais uma vez, meus verdadeiros lindos, eternamente.

7 comentários:

Fil. disse...

Ouvi tudo e guardei, o reflexo das tuas palavras ainda vagueiam na minha poça de água. Ainda que cinza, forma 'amor'.

bjos.

Mariana Cotrim disse...

não sei escolher nenhum texto seu, mas esse, pqp, ta maravilhooso!
e obrigada VOCE pelo apoio e pelos comentários, por me ouvir, por me deixar te ouvir.. enfim
parabéns, seempre :*

Iasmin Morais disse...

a forma intensa que usa as palavras é realmente impressionante. muito maravilhoso o texto. *.*

Letícia Silva disse...

menina, sério estou extremamente encantada com suas palavras. você escreve de um forma que envolve a gente em cada palavra, cada frase. eu amei cada parágrafo, de verdade.

Marcelo R. Rezende disse...

Alguns segredos a gente não conta, mas de tão importantes eles acabam criando vida própria e saem das nossas bocas, sem autorização.


Amo.

Unknown disse...

Além de o texto estar impecável, eu me identifiquei, me vi em muitas frases que tu usou, juro!
E continua desvendando e transformando esse mundo confuso em palavras. O teu segredo está bem guardado.
Um beijo!

Firefly disse...

Intenso, profundo, incrível, mais um para minha lista de textos memoráveis.