quinta-feira, 6 de outubro de 2011

um conto pra nós dois.

(escrito juntamente com Lucas Bilk, do isso não é amor, e outras histórias.

só pra distrair a saudade e acariciar o amor.
pra ser lido ao som de C'est un Monsieur Très Distingué - Edith Piaf. )


esse é um conto pra se ler de manhã:

ela acordou com o barulho dos ovos quebrando.
não fora o barulho da máquina de escrever, não fora o barulho da gordura do bacon na frigideira, tampouco o barulho da cafeteira que a acordara.
foram os ovos quebrando.

a cozinha estava um caos. ele ia de um lado para o outro. barulhento. escrevia um parágrafo na máquina de escrever sobre a mesa e voltava para a cozinha cuidar da comida.

e a barulheira continuava.

os talheres batendo, os pratos sendo postos sobre a mesa. e ele sabia que ela tinha o sono pesado, não seria qualquer barulhinho que a acordaria.
mas ela acordou com o barulho dos ovos.

todas as janelas e portas da casa de verão estavam fechadas. aquela casa era um lugar peculiar. quando se permitia estar aberta, ela era uma casa arejada e fresca, ideal para os verões quentes e úmidos. no inverno a casa retraía-se nas janelas fechadas, guardava pra si todo o calor dos ocupantes.
ao voltar à mesa, ele cantarolava uma canção baixinha de Edith Piaf, acompanhando o som do rádio.

je resterai seule à pleurer, mon amour sera bien payé.

escreveu mais algumas palavras batidas à máquina. bebericou um gole do café que estava sobre a mesa. não gostou, estava quente demais. voltou para cozinha para cuidar da comida.


ovos quebrando. talheres batendo. uma melodia francesa tocando baixinho.
ela piscou os olhos, ainda protegida pela escuridão que o travesseiro em cima de sua cabeça lhe dava: ovos quebrando ?
jogou o travesseiro no chão e procurou qualquer roupa no chão, para se vestir. achou uma jaqueta de aviador, uma que ele sempre fazia piada com Barão Vermelho.
na ponta dos pés e arrumando o cabelo, ela caminhou até a sala. seus pés descalços deixavam marcas de umidade no chão escuro de madeira. o assoalho de madeira flutuante absorvia qualquer som que suas pisadas poderiam causar.
ao passar por uma das janelas do corredor ela pode ver o grande morro que se estendia abaixo. a terra colorida de verde até onde os olhos podiam ver. as folhas que chacoalhavam com o vento forte. e ela ali, pequenininha, protegida pela jaqueta de aviador, imersa na imensidão de paredes daquela casa, enquanto o mundo acabava lá fora. eles não precisavam do mundo. só precisavam um do outro.

com um pano de prato nos ombros e um chapéu panamá enviesado na cabeça, ele cozinhava atrapalhado qualquer coisa que cheirava a bacon. o café quente já estava na mesa. ela sorriu. ele não tinha esquecido do seu açúcar. e também tinha a máquina de escrever, mais alguns papeis espalhados.
sentou-se na cadeira e começou a ler um trecho do que ele escrevia:
“Pela minha camisa aberta eu vi arranhões no meu peito. Marcas roxas na cintura. Nos pulsos eu via marcas de correntes. Marcas de tiras de couro percorriam toda a extensão dos meus braços. Eu não sabia como chegara lá. Não sabia o que haviam feito comigo. Não sabia onde estava. E aí eu vi uma mulher”.
ela abriu mais o sorriso. provavelmente mais uma de suas histórias para fazer chorar.


ele mexeu toda a mistura na panela, ovos, pimentões, bacon, e um golezinho de vinho branco. o vapor subiu e embaçou a lente dos seus óculos. depositou todo o conteúdo da panela em uma travessa. ligeiramente enraivecido ele tirou os óculos, colocou-os sobre a bancada da cozinha, ajeitou o chapéu e dirigiu-se à mesa levando os ovos mexidos. ao virar-se, deu-se conta que ela já havia acordado. e estava lendo o que ele havia escrito. ela levantou a cabeça das folhas e olhou pra ele,

- o que é isso ?
- ah. qualquer coisa sobre umas maldições e uns fantasmas. faz tempo que você levantou ?
- não, não. acordei com os ovos quebrando.
- então bom dia – ele disse, com as palavras acompanhadas de um sorriso.
- ah. bom dia – ela respondeu, coçando o olho.

ela levantou-se para dar bom dia à ele. enquanto ela caminhava ao longo da extensão da mesa, para encontra-lo do outro lado, ele viu os passos de gato vindo em sua direção, movimentos que não aparentavam aresta alguma, eram precisos, calmos, imponentes. os pés pequenos de unhas pintadas, as pernas branquíssimas. os seios escondidos e ao mesmo tempo não escondidos sob a jaqueta. a curva entre as pernas preenchida por uma pequena nuvem de pelos negros. e ela parou, a alguns centímetros de seu rosto. ela sorria. ele poderia beija-la neste momento. a levantaria no colo, a jogaria sobre a mesa, quebraria os pratos. e ali mesmo ele teria ela para si. iria emaranhar-se nos cabelos enrolados dela, sentir o suor e os arranhões. viu os olhos negros dela olhando no fundo dos seus, ela sorria. viu os lábios sem cor formarem alguma palavra em que ele não prestava a atenção. e todo esse momento não durou mais que um segundo. ele, envolvido completamente na sua imaginação. começou feito uma cama de gato, tornara-se uma teia, e agora era um grande novelo que enredava todas as imagens criadas pela sua cabeça. mas o toque dela dissipou o momento. ele sentiu a mão sobre seu rosto. novamente recobrou a linha de pensamentos racionais. pensou que deveria estar parecendo um idiota, assim, perdendo-se para si mesmo nessas horas. ela beijou-o suavemente.

- vem, vamos comer.

eles se sentaram, um ao lado do outro. a mesa era grande, rústica, de madeira, possuía só três cadeiras, diferentes. ela levantou os braços, pra ver se as mangas grandes demais da jaqueta desciam e permitiam ela usar as mãos livremente.

ela se virou e observou-o de perfil. ele pôs o café nas duas xícaras e tomou um gole do seu. sem açúcar. ela imaginou o quanto aquilo devia estar amargo.

ela sempre se sentia como uma menininha do lado dele, infantil e sem paciência, enquanto ele se movimentava sem pressa. uma criança diante das suas poses e degraus de personalidade, o canalha desalmado, o romântico inglês, o petulante arrogante... ela pensou em lhe perguntar qualquer coisa sobre engenharia ou o último livro que ele estava lendo, sem qualquer interesse no que ele falaria realmente, só para ouvi-lo concentrado, escolhendo as palavras certas e falando naquela voz polida e paciente. ela poderia ficar ali a vida inteira, só sugando cada detalhe dele. afogar-se na indecisão entre o castanho claro e verde de seus olhos, sentir seu cheiro de pele quente, explodir de raiva e tesão quando ele usava aquele sorriso de canalhice descabida. esconder-se debaixo de suas asas e esquecer-se do mundo lá fora, do vento uivando atrás das janelas, do cheiro do café subindo em espirais, das roupas espalhadas lá no quarto, dos ovos que se quebraram.

- teu café vai esfriar – ressoou a voz dele, acordando-a do devaneio momentâneo.

ela pegou o açucareiro, colocou incontáveis colheres de açúcar.
ele sabia que no fim o café dela formaria um xarope de açúcar não dissolvido no fundo da xícara.
sabia que os beijos seriam amargos no doce.

comeram devagar, conversaram qualquer coisa sobre livros ou filmes. ele terminou primeiro, e ficou vendo ela debruçada sobre o prato, devorando os ovos mexidos com torrada.

- você tá com fome, né?
- se você não tivesse me lembrado que comida existia, eu nem ia comer.

ele mal esperou ela dar a última garfada e logo foi pegando-a no colo. ela enredou seus braços no pescoço dele e deixou ser carregada para o quarto, sendo posta delicadamente na cama. e então ele deitou junto dela, ambos ignorando que ainda faltavam algumas horas para se voltar pra cama. e assim, eles se beijaram. e só iriam se importar com a presença um do outro, durante o resto do dia.

até porque, o dia só estava começando. era de manhã, afinal. e como toda boa manhã, nunca se acontece muita coisa.

2 comentários:

Evelyn disse...

Eu estou amando essas histórias vindas de vocês.
Elas absurdamente fogem do clichê romântico que eu inevitavelmente sigo.
Continuem, por favor.

Mariana Cotrim disse...

isso ta maravilhoso, cara. vocês deviam, sei la, escrever um livro juntos......... pq eu compraria!